milagre da mais avançada tecnologia, a gama de robots domésticos “carochinha” cumpria, na perfeição, todas as tarefas caseiras. a família ratão, uma das que,mesmo em tempo de crise, gozava de completo desafogo económico, não hesitou em adquirir um, escolhendo, entre os vários modelos, o terminator – assim se designava por imitar, na aparência, a personagem celebrizada por arnold schwarzenegger, da qual, vá-se lá saber porquê, a dra. ratão era fã.
chegado àquele que passaria a ser o seu lar (seu, apenas, no sentido em que teria de o cuidar), o robot fez as delícias da família: limpava, lavava roupa e loiça, engomava, fazia camas, arrumava gavetas, atendia chamadas, abria, educadamente, a porta às visitas, cozinhava e punha a mesa, seguindo à risca todas as instruções recebidas...
mas o “carochinha” vinha com um defeito do qual ninguém suspeitava: possuía um coração. um delicado mecanismo, imprestável, é certo, mas ao qual estavam ligados sentimentos e emoções, semelhantes aos da espécie humana. e esse coração começou a bater descontroladamente, quando o robot se deparou com a beleza loira, se bem que um tanto fútil, de joana, a filha do distinto casal ratão.
joana tinha um noivo; o facto de estar o casamento marcado para dali a alguns meses trazia o pobre robot em grande sofrimento. como suportar vê-los abraçados ou a beijarem-se, sempre que ficavam a sós na sala?então,dando voltas ao seu atormentado cérebro electrónico, concebeu um plano para a conquistar.
a partir dessa altura, joana começou a receber ramos de rosas pela manhã, bem como bilhetes de amor, com poemas perfeitos que lhe eram dedicados; só que ela julgava ser o noivo o secreto emissor de tais ofertas e acabou por apaixonar-se verdadeiramente por aquele rapaz oriundo de famílias ainda mais abastadas do que a sua, de aspecto um tanto atoleimado e dado a conversas pretensiosas e medíocres, no qual supunha ocultar-se esse "outro", de espírito elevado e romântico, que só a ela se dava a conhecer.
passou o tempo, chegou a manhã da ansiada cerimónia que iria consagrar a união do jovem casal. o robot, mergulhado na maior das tristezas, aspira cuidadosamente o chão da cozinha, antes de começar a ultimar as iguarias para o almoço de casamento, que decorrerá no exuberante jardim da casa e contará com umas boas dezenas de selectos convidados. nisto, um barulho metálico chama a sua atenção. e eis que vê, no chão, um belíssimo coração de ouro.”este é o meu último trunfo”, pensa, e guarda-o cuidadosamente dentro da caixa do pão.
depois da habitual sessão de fotos, partem a noiva e a família em direcção à igreja. diz quem esteve presente que foi lindo o casamento, onde não faltaram trajes elegantes e, primorosamente interpretada, a inevitável marcha nupcial.concluída a cerimónia, o casal, familiares e convidados dirigiram-se para a casa dos pais da noiva e tomaram, alegremente, os seus lugares à mesa.
joana entra em casa, para uns pequenos retoques na maquilhagem, e fica surpreendida quando a porta da cozinha se entreabre e o robot lhe faz um sinal, a pedir que se aproxime.
“deve ser para provar algum dos cozinhados” , pensa ela. mas, mal a apanha na cozinha, o robot fecha a porta e, perante os seus olhos e ouvidos incrédulos, começa a contar-lhe da sua paixão, dos ramos de rosas, dos poemas de amor que ele- sim, era ele e não o noivo - lhe escrevia. e diz, também, que só naquela altura resolvera revelar-lhe o seu segredo, porque tinha, finalmente, algo valioso para lhe oferecer: um coração de ouro.
a boca de joana, inicialmente aberta de surpresa, escancara-se agora numa tremenda gargalhada. "só me faltava teres-te apaixonado por mim! e, ainda por cima, acreditares poder ser correspondido! ah ah ah ah! põe-te no teu lugar, ó carochinha, e limita-te a cumprir as tuas funções, que foi para isso que te comprámos! ah ah ah! bem, já que aqui estou, vou dar uma espreitadela no arroz de amêndoas. ah ah ah!"
e assim fez. levantou a tampa, espreitou para dentro da enorme panela; e foi a última coisa que fez, pois uma brutal pancada na nuca atingiu-a mortalmente.
à mesa, a noiva é aguardada e todos começam a estranhar a demora. até que a mãe resolve ir procurá-la. quando entra na cozinha, solta um grito estridente, perante esta visão de horror: joana ratão está morta, com a cabeça enfiada dentro do arroz; a seus pés, um pequeno coração de ouro.
o robot “carochinha”, modelo terminator, tinha-se retirado silenciosamente para um canto de uma das arrecadações; nunca mais o conseguiram pôr a funcionar.