mas eu sempre tão longe
a ronronar num sonho de janelas impossíveis
hoje
se música flui em algum dos meus gestos
mais serenos
é porque a memória de um raio de sol
invadiu de surpresa
a minha felina mente
Humana
aviso: contém passagens eventualmente chocantes
sucedia ainda que, por obra do amor – o amor de brida por ele, naturalmente – o peixe voltava, sonho após sonho, à sua forma de gato. apaixonado e reconhecido, presenteava a sua princesa com coleiras carregadas de pedras preciosas, tratamentos de beleza nos spa's mais em moda, incontáveis viagens por jardins exóticos que, iluminados por centenas de velas aromáticas, eram palcos perfeitos para o seu idílio.
um belo dia, depois de acordar e de se espreguiçar voluptuosamente, brida dirigiu-se para a cozinha,disposta a trincar alguma comida seca que, habitualmente, lhe deixavam, num recipiente colocado no chão, junto ao frigorífico. nisto, vindo do lava-louça, um barulho intrigante. não resistiu a dar uma espreitadela e qual não foi o seu espanto quando, de dentro de um saco plástico cheio de água, um peixe prateado lhe dirige estas palavras:
acabei de chegar, vindo dos teus sonhos, ó formosa! aqui me tens, esperando, impaciente, que um beijo teu me faça sair desta prisão!
brida, de um salto, rasgou o plástico, abocanhou o peixe e devorou-o num ápice.
regressou, pouco depois, à sua almofada, tomada de azia e forte indisposição.antes de adormecer, ainda cuspiu, repugnada, algumas escamas e até uma barbatana que atirou para longe, num gesto ágil e elegante. rezou, depois, ao Senhor Dos Gatos, pedindo-lhe que, dessa altura em diante, a fizesse sonhar com vulgares aventuras em becos à luz da lua; e a ter de haver, forçosamente, um peixe, pudesse ele ser transparente mas sobretudo amável, saboroso, redondinho e, caso o seu sonho se voltasse a concretizar, não viesse a causar-lhe, como o peixe prateado, digestões difíceis ou amargos de boca.
idun (texto e foto)