dezembro 30, 2008

do coração aos saltos

artur era o nome de um par de sapatos: grandes, pesados, grosseirões e mal prontos, nº44.
o homem que os calçava era parecido com eles e a mulher com quem vivia também usava sapatos, como toda a gente: chamavam-se leocádia.
todas as noites, quando iam descansar para debaixo da cama do casal, leocádia tinha de ouvir, até altas horas da madrugada, as queixas do artur; entre dois arrotos, dizia mal de tudo: era a chuva que o amolecia, os apertos no "metro" que lhe rebentavam as costuras, o mau estado do pavimento que lhe dava cabo da pele, os cães vadios que o obrigavam a estragar as biqueiras...
ela ficava calada, a sentir, ainda, as pisadelas que levara no supermercado, o martírio da baixa lisboeta, em época natalícia, o detestável cheiro da graxa que, tantas vezes, tinha de suportar, ou como ficara, naquele dia, arrasada, o coração aos saltos, a correr atrás do miúdo que se lembrou, sem mais nem porquê, de fugir, desafiando o trânsito da avenida da liberdade.
olhava-se discretamente no espelho: que bonita que era, a pele limpa e macia, apesar do cansaço, o decote discreto, a querer esconder um peito-do-pé palpitante! era então que entristecia e alimentava um secreto, muito secreto desejo.



aconteceu, na manhã de 25 de dezembro. leocádia acorda, estremunhada, com o barulho dos chinelos correndo alegres pela casa, e pensa que continua, ainda, a sonhar: um atacador estranho envolve-a num abraço e o par de sapatos correspondente, nº 39, parece mesmo feito "à sua medida"; também, como ela, conheceu longas estradas, belos passeios, conforto e desconforto de alguns lares. no entanto, tem um encanto tão especial quando, de sorriso aberto, lhe diz:
"bom dia!"...
ela quer responder mas, entre a comoção e a surpresa, só consegue fazer bocas.
e, a partir de agora, se a virem por aí, experimentem dizer-lhe que já não acreditam no menino jesus!


este "conto de natal" pertence a uma série de textos de ficção, escritos pela Humana, e que foram publicados, há já uns bons anos, no caderno "ler escrever" do extinto "diário de lisboa". à isabel paiva couberam as ilustrações, e a Humana relembra essa gratificante parceria, que teve tantos momentos de riso e cumplicidade.

votos de um excelente ano 2009, com boas surpresas para todos.

Arquivo de jardinagem

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