ninguém ousaria pôr isso em dúvida: d. joão era um móvel cheio de estilo. desde a madeira da mais pura cepa até às linhas sóbrias, de um bronzeado discreto, tudo nele tinha um toque de natural requinte e rara distinção.
escusado será dizer que não havia cama que lhe resistisse – não foram poucas as que, primorosamente torneadas, entraram naquele quarto e saíram pouco tempo depois, pernas gastas, cabeceiras desmanchadas, para logo serem substituídas por outra que, inevitavelmente, acabaria em breve por render-se ao fascínio do Grande Sedutor.
ia chegar, naquele dia, uma nova cama; d. joão suspirava, tomado da ansiedade que sempre agita os móveis de natureza arrebatada. passou toda a manhã a esmerar-se na aparência: o “pronto” que anunciavam muito na televisão e algumas gotas gotas de óleo de cedro tinham-no deixado impecável, acentuando-lhe o brilho e o suave odor natural.
não sabemos quanto tempo ele esperou. se ele pudesse falar, dir-nos-ia, decerto: “uma longa eternidade”.
quando a viu aparecer, teve uma doce e dolorosa certeza: esta, sim, seria a definitiva. ocultou, conforme pôde, o embaraço, tentou adivinhar-lhe a cor, por sob as camadas de tinta, avaliou-lhe a idade: podia bem ser sua bisneta!... mas isso, com os diabos!, nem era impedimento!... veriamos se conseguiria dizer “não!”, quando ele, em ternas confidências, lhe abrisse as mais íntimas gavetas...
diz uma velha conversadeira que a coisa não esteve fácil. desejada por muitos e a todos dando esperanças, margarida – era esse o nome dela – era caprichosa e volúvel como nenhuma outra: enchia-se, vaidosa, com grandes almofadas, cobria-se inteirinha com uma colcha escarlate, de cada vez que d. joão tentava apreciar-lhe os contornos mas, quando o o anoitecer chegava e ele já quase se tinha resignado a passar os dias que lhe restavam em companhia do seu fiel bicho-carpinteiro, mostrava-lhe, perversa, a roupa interior.
foram meses de angústia para o pobre apaixonado; finalmente, só quando, com um tímido vestígio da dignidade de que apenas os mais nobres são possuidores, ele lhe depositou, aos pés, a sua chave, ela cedeu.
(este seria o esperado desfecho de mais uma vulgar história de amor. porém, a realidade tem, por vezes, estranhas ironias e d. joão sentia-se frustrado e infeliz. perita, de início, em simulados rangidos de prazer, margarida rapidamente se tornou avessa aos arroubos amorosos, dando a conhecer aquilo que, afinal, sempre fora: uma gélida e antipática Cama de Ferro).
o texto faz parte de uma série publicada, sob pseudónimo, no caderno "Ler Escrever" do extinto "Diário de Lisboa".