março 18, 2010

a história em verso da Bela Adormecida que era, também, a Gata Borralheira, e do Sapo que não sabia ser Príncipe

há quase um mês que o computador cá de casa faleceu. foi uma morte súbita, sem aviso, que nos deixou  entristecidos, muito consternados e temporariamente impossibilitados de participar no tão agradável  convívio blogo-esférico.
felizmente, o tempo melhorou, bem como o humor da nossa Humana; no passado sábado, depois de uma manhã de jardinagem, resolveu sair para um "fim de tarde cultural". perguntámos-lhe o que era isso. respondeu ela: hoje, poesia e música. e saiu porta fora, apressada.
então, para não ficarem a pensar que a bicharada do "pequeno jardim" não é dada a essas coisas, resolvemos, também nós, preparar um "fim de tarde cultural". andámos a vasculhar num armário da Humana e foi com satisfacção que descobrimos: um par de castanholas, uma caixa chinesa e uma armónica de blues. ora, música - e músicos - já temos, disse eu.
quanto à poesia, pedi à brunildinha que improvisasse alguma coisa e se encarregasse, também, de iniciar o jovem llugh nas artes da leitura em voz alta. tudo correu da melhor maneira: incumbimos o vizinho ruca de convidar a gataria da vizinhança e de cobrar as entradas. houve quem, pensando que o evento era ao ar livre, tentasse pular a vedação do jardim e assim assistir ao espectáculo de borla. não contavam era com o facto de termos decidido que o mesmo iria decorrer em casa, mais precisamente na sala, que estava devidamente preparada para servir de palco e acolher confortavelmente a (numerosa) assistência.
 eu, a brunildinha e o artur proporcionámos à gataria um apontamento musical deveras interessante: a brunilde tocava as castanholas com assombrosa habilidade, o artur esmerou-se na harmónica e eu lá arranhei os sons que achei mais adequados à circunstância na caixa chinesa: chama-se a isto "improvisação musical".
depois, o llugh começou a leitura da "história em verso da Bela Adormecida que era, também, Gata Borralheira e do Sapo que não sabia ser Príncipe". (que presença, que voz!) 

a Bela, gatinha
mimosa e lampeira
dormia, quentinha
bem junto à lareira
da sala branquinha
de sua madrinha.

chega, então, um sapo
faz-lhe olhos bonitos:
"então, borralheira,
queres brincadeira?"
ai, pobre de mim!
pôs-se ela a gritar.
indiferente aos gritos
"não sejas assim!
já cá estás no papo!"
levou-a pró quarto
conseguiu beijá-la
e ao que ela não queria
tentou obrigá-la.

passado um bocado
sentiu-se cansado
e então disse à gata:
"tu és uma chata!
mas que desespero!
de ti estou farto
e já nada quero!"

em fúria, a bichana
espancou o tolo
deu-lhe com tal gana
que o deixou num bolo
todo ele estendido
no chão, ao comprido.

varreu-o, sem pena,
da casa p'ra fora,
limpou a mobília,
e depois, serena,
nem sequer o olhou,
foi-se logo embora.

e ele, sem consolo,
triste e arrependido
chamou a família
e triste suspirou.

"adeus, meus amores,
adeus cruel mundo!"
disse o moribundo
muito enfraquecido
e cheio de dores.
"a culpa foi minha.
eu fui castigado
por ter molestado
a bela gatinha".

dito isto, finou-se
de patas p'ró ar
foi a enterrar
e a história acabou-se.

havia lágrimas nos olhos da assistência. o gato maurício (logo ele, que foi, em bons tempos, o maior sedutor cá do bairro!) com voz trémula, tentou gritar: morte aos sapos! mas com a emoção - e também porque estava, ao mesmo tempo, a abocanhar um pedaço de rato que tinha trazido, para o caso de lhe dar a fraqueza, a coisa soou, para uns, como se ele tivesse dito: morte aos papos! outros garantiram que tinham ouvido: morte ao sacos! e outros, ainda: morte aos trapos!
para criarmos um ambiente descontraído, avançámos para uma interpretação mais enérgica: a brunilde parecia o nijinsky, a dançar em rodopio, enquanto tocava as castanholas - e por pouco o arturzinho se livrou de ficar com uma orelha entalada numa delas, num momento em que ele, para tocar a harmónica com mais estilo, inclinou levemente a cabeça, para o lado esquerdo - ficando, assim, a escassos milímetros da terrível castanhola que a brunildinha empunhava com toda a convicción, na sua pata direita.

por fim, depois de comovidas felicitações pelo nosso desempenho e incentivos para novas "tardes culturais", fomos todos petiscar umas sardinhas em lata que a Humana tinha trazido de um lugar do interior. acho que pertenciam a um marinheiro que tinha falecido, num jardim desse lugar tão longe do mar, e tinha deixado uma grande quantidade dessas latas (que ninguém queria herdar, pois os habitantes da casa eram mais apreciadores de carne)." bem - disse a Humana- se não forem comidas por cães, hão-de ser comidas por gatos" - e assim aconteceu.

ah! quase me esquecia de dizer que o dinheiro que angariámos com a venda dos bilhetes foi oferecido à Humana que, com a nossa ajuda, pôde comprar, a pronto, um computador, novinho em folha, que faz agora as delícias destes bichanos cibernautas.


* com uma pis-cadela de olho (e uma vénia) a herberto helder e à sua história sobre o casal de cães que tinha um marinheiro a tomar conta do jardim.

Arquivo de jardinagem

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