novembro 01, 2009

los misterios de madrid *

tenho de admitir: estou apaixonada. o felizardo é o gato diego, de málaga, que, no post anterior, me dedicou a canção " aquellos ojos verdes", numa imitação perfeita da voz de nat king cole.
depois de emails, sms e promessas de amor eterno, trocados entre mim e ele, o gato diego, que é um bichano decidido, resolveu pedir à Humana que me autorizasse a ir a madrid, assistir a uma das suas habituais actuações, às quintas-feiras, num conhecido bar da calle de recoletos. nesse antro, frequentado pelos humanos e felinos mais saudosistas da capital espanhola, ele interpreta românticos boleros, acompanhado por moncho, patitas de plata - assim alcunhado pela destreza com que, em tempos idos, tocava guitarra mas, também, porque é um verdadeiro "mãozinhas", sempre que alguma gata bem dotada tem a sorte ou o azar de estar ao seu alcance, e por pepito, el andaluz - um antigo cantaor que, condenado a morrer esclerosado e faminto num beco obscuro de sevilha, foi salvo por diego, que o deixa pensar que forma, com ele e com pepito, um trio musical de sucesso.
a Humana autorizou a minha ida a madrid, e ficou muito bem impressionada com o diego, por ele ter feito questão de me vir buscar, de automóvel, e de convidar, para nos fazerem companhia, a minha irmã brunildinha e o nosso vizinho ruca, o gato azul russo que passa a vida no nosso jardim, a olhar embasbacado para a brunilde e para a mimosa.
não calculam a azáfama a que nos entregámos, em preparativos para a viagem. a Humana disse que eu e a brunildinha tínhamos de ir preparadas para a movida madrileña: pintou-nos as unhas com uma cor verdadeiramente fashion, comprou uma coleira em veludo,vermelha, para a minha irmã e uma, para mim, cravejada de pedras brilhantes, pois disse-me que eu tinha de arrasar as fãs espanholas de diego, e esse acessório chamaria a atenção para os meus olhos e realçaria o meu porte aristocrático - qual carla bruni em versão felina.
o diego bateu à porta cá de casa na passada quinta feira, ao romper da manhã. disse ele que tinha chegado na noite anterior mas, por não querer incomodar, resolvera pernoitar num hotel junto ao mar, perto daqui. o ruca esteve quase a desistir da viagem, pois nunca esteve noutro sítio que não fosse a casa dele ou o nosso jardim, e tem um medo de morte dos automóveis. mas o diego foi falar com ele (hay que conocer mundo, caray! no seas tonto!) e lá se decidiu a entrar no carro, sentando-se no banco de trás, colado à brunildinha.
a viagem foi muito agradável: o diego convidou-nos para almoçar em mérida, no terraço da cafeteria rufino, e ainda nos deu a conhecer o anfiteatro romano. depois, prosseguimos a viagem até madrid, e fomos directos ao hotel anaco, onde havia dois quartos reservados: o nº 33 , para o ruca e a brunildinha, o nº 3, para mim e para o diego. estava à nossa espera, no bar do hotel, o nosso querido amigo agustin, que já nos veio visitar , algumas vezes. o agustin é poeta e compositor e conhece, como poucos, os meandros culturais de madrid; ofereceu-se logo para passar a tarde com o ruca e a brunilde e levá-los a alguns locais de interesse. "a Humana pediu para , se der tempo, não te esqueceres de nos levar ao museu do operado" - bichanou-lhe a brunildinha que, com as mudanças de temperatura, tem andado um bocadinho surda.
mal eles saíram, eu e o diego subimos ao nosso quarto, onde nos entretivemos até chegar a hora de jantar. quando a minha irmã e o ruca regressaram ao hotel, despedimo-nos do nosso amigo humano e seguimos para o don jamón, na gran via, onde nos deliciámos com presunto pata negra e ficámos os quatro, em animada conversa, até chegar a hora de nos dirigirmos para a calle de recoletos, assistir à tão esperada actuação do diego.
o que ele não sabia é que eu e a Humana lhe tínhamos preparado uma surpresa: assim, quando lá cheguei, disse que queria ir ao wc e fui falar com o dono do bar, o qual, por sua vez, já tinha falado com a Humana, por telefone. o diego não cabia em si de espanto, quando ouviu anunciar: y ahora, con nosotros, tenemos a idun, la reina de la noche! dirigi-me ao palco, com movimentos graciosos e sensuais; acompanhada pela orquestra da casa, interpretei "la historia de un amor", em homenagem a eydie gorme y los panchos. por motivo de, naquele local, ser expressamente proibido o uso de câmaras fotográficas e telemóveis, não posso mostrar-vos nenhuma imagem da minha actuação. mas aqui fica um registo sonoro que, à socapa, o ruca conseguiu fazer, tendo a pilha do gravador acabado, precisamente, quando eu terminei a canção e me preparava para receber os aplausos:

não só diego, como todos os machos felinos presentes na sala, estavam doidos por mim.
foi um reboliço, com o moncho a querer apalpar-me, o diego a defender-me, a restante gataria soltando miados de admiração. até o gato don guido, un caballero que eu julgava morto há uma data de anos, vítima de pneumonia, tendo esse acontecimento dado origem a um poema, me acenava para me ir sentar à sua mesa, onde se encontrava, rodeado por três gatitas que, juntas, não somariam nove meses de idade.

nisto, diego faz um sinal à assistência e sobe ao palco. pepito el andaluz, que acordou súbitamente de um sono que tinha começado, mal se sentou na mesa reservada aos artistas, julgou ser esse o sinal para cantar em coro com os outros elementos do trio, e desata a gritar:
perompero
perompom perompompero
perompom perompompero e ay!!!!!!!!! quando moncho resolve calá-lo, acertando-lhe com uma garrafa de vinho, vazia, na cabeça.
faz-se, então, silêncio. e diego, fazendo sinal aos músicos, canta a sua adaptação, ali mesmo improvisada, de "la historia de un amor":

las estrellas son testigos de este amor
en mi alma ya no existe soledad
de pasion yo te hice jura
tu me has dado la ventura
de quererme de verdad

me enloqueces quando bailas para mí
hay promesas deliciosas en tu voz
quando miras a la luna
con tus ojos de aceituna
hechizado quedo yo

no te vayas por favor
bella idun, bella idun
yo sin ti ya nada soy
bella idun, bella idun

no me niegues tus carícias
ni tus besos ni tu piel
no te vayas por favor
mi bella idun
yo por ti me moriré

os aplausos foram muitos e merecidos. diego continuou a sua actuação, o ruca e a brunildinha foram dançar, e que belo par eles faziam! eu sentia-me uma verdadeira rainha, embora escondesse a emoção, ostentando, como convém, um ar de indiferença. às tantas, alguém me agarra, delicadamente, uma pata: "hola, soy pedro almodóvar e quiero invitarte a ser la estrella de mi prójima película. me das tu contacto?"
quando decidimos sair e regressar ao hotel (teríamos de partir na madrugada seguinte, a caminho do nosso pequeno jardim, tal como tínhamos combinado com a Humana), eu nem tinha a certeza de não estar a sonhar todos os acontecimentos das últimas horas. a voz afectuosa de diego, a sua figura imponente, contrastando com o meu ar delicado, a sua pata indicando-nos, gentilmente, a melhor altura para atravessarmos a rua, pareciam bem reais. mesmo assim, pedi à brunildinha para me beliscar, coisa de que logo me arrependi, pois ela deu-me tamanha unhada que eu quase perdi a compostura.
por um momento, voltei-me para trás, para me despedir, mais uma vez, daquele local onde tinha experimentado tão intensas emoções. e sabem vocês quem é que eu vi dirigir-se para a entrada do bar? nada mais, nada menos, do que o legível, de câmara fotográfica em punho. a seu lado caminhava, muy salerosa e segura, uma humana, vestida com um traje de bailaora de flamenco.



* com uma piscadela de olho a muñoz molina, antonio machado, pedro almodóvar e aos amigos que, mesmo sem que eu o previsse, acabaram por entrar nesta história.

Arquivo de jardinagem

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