outubro 14, 2009

amigas, amigas



chamo-me rui honório. lecciono, há quase 20 anos, a disciplina de história, na escola secundária de estevas.
estevas é uma pequena vila, situada no alentejo litoral; aqui, o quotidiano é calmo: um casamento, um divórcio, a morte inesperada de algum habitante da vila, são os factos que normalmente quebram a monotonia destas vidas.
ontem, um acidente deixou consternados os habitantes de estevas: inês, de 19 anos, filha de um médico que reside em lisboa e é proprietário de um monte, a 5 km da vila, foi atropelada por um automóvel, quando ela e carla, da mesma idade, filha dos proprietários de um café local, dançavam no meio da estrada, à saída da discoteca bubbles, que fica situada junto á praia. o condutor do veículo declarou nada ter podido fazer para evitar o atropelamento. inês está internada e o seu estado de saúde é grave. embora haja hipóteses de sobreviver, os médicos não sabem quais as consequências que poderão resultar das lesões sofridas.

filipa, 17 anos de idade, irmã de carla, foi quem telefonou ao pai de inês, para o avisar do acidente. foi ela quem explicou à polícia como tudo se passou, pois carla encontrava-se em estado de choque, depois do que aconteceu. hoje, fechada no seu quarto em casa dos pais, balbucia frases desconexas, parece apavorada, só admite a presença da irmã, que fala com ela muito baixinho, a tentar acalmá-la. o que dirá filipa à sua irmã mais velha, irmã que ela sempre idolatrou, a ponto de lhe imitar os gestos , tom de voz, forma de vestir e até de usar as mesmas expressões verbais, desde criança?

na qualidade de amigo dos pais e ex-professor de carla, fui visitar esta última, para tentar conversar sobre o que se passou ou, pelo menos, acalmá-la um pouco. quando ia a entrar no quarto, ouvi filipa dizer uma frase que achei, no mínimo, estranha, dada a amizade que unia as três miúdas, desde a infância. e eu posso não ter ouvido bem, mas quase ia jurar que ela dizia á irmã: “tinha de acabar assim, ela há muito que estava a pedi-las...”

nem sei bem como é que tudo aconteceu, diz –me, pouco depois, a filipa. (carla continua a recusar-se a falar com quem quer que seja, para além da irmã, e comigo não abriu excepção).
dizem que, em pequenas, éramos parecidas com o que somos agora. o professor lembra-se de nós, com essa idade? a carla era linda: loira, pequenina, roliça, rosada; eu já na altura era assim, morena, cabelo liso com franja. era a mais extrovertida das duas, por vezes até demais. quantas vezes os meus pais tiveram de me mandar calar, para não incomodar os clientes...
um dia, estávamos, como de costume, no café. eu tinha 5 anos, a minha irmã, 7. a inês entrou, com os pais: era morena e magricela, mas tinha uns grandes olhos verdes e um sorriso muito bonito, lá isso tinha.
a inês e os pais viviam em lisboa. a mãe era decoradora de interiores, o pai, médico, tinham comprado um monte aqui perto e estavam a arranjá-lo – recuperá-lo, disseram eles ao meu pai - para começarem a ir lá passar alguns fins de semana.
e o certo é que começaram a aparecer no nosso café com regularidade, nós e a inês já brincávamos juntas e, a partir de certa altura, até nos convidavam para irmos passar o dia com eles, lá no monte. era sempre divertido, lá isso era, sobretudo no verão, quando podíamos nadar e brincar na piscina. e tinham um cão muito bonito, um golden retriever, acho que é essa a raça . chamava-se noah.
e depois, quando a inês tinha 12 anos, os pais divorciaram-se. deixámos de a ver, o monte ficou praticamente ao abandono; só o pai dela aparecia de vez em quando, de fugida, nem sequer lá ficava de um dia para o outro.
o tempo foi passando, a minha irmã continuou tão bonita como sempre foi. teve – e tem - vários rapazes apaixonados por ela, mas ela não lhes liga nenhuma, sabe? arranja-se muito, veste-se bem, sempre na moda, ela diz que os nossos pais podem comprar-nos muitas roupas e outras coisas assim, porque temos melhores condições económicas do que grande parte das pessoas aqui da terra.
e não é que ontem, ao fim de seis anos sem nos vermos, a inês aparece lá no café? cresceu muito, continua com aquele ar esquisito, mas as pessoas continuam a achar que ela é bonita. não despegavam os olhos dela, até mesmo os rapazes que cá vêm habitualmente, na esperança de que a minha irmã lhes dê alguma atenção. o que eles não sabem é que a carla anda apaixonada: ele chama-se luis, mora em lisboa, já há algum tempo que vem cá, com uns amigos, costuma frequentar a bubbles.
pois a inês convidou-nos para jantar, e a minha irmã lá aceitou, um bocado contrariada, mas avisou logo que a seguir ao jantar, eu e ela tinhamos de ir à discoteca, já estava combinado. ela não disse mais nada, é claro, mas como já deve estar a calcular, queria ir lá só para ver o luis, sabia que ele, ontem, ia lá estar. e a inês também não fez perguntas, até achou gira a ideia de ir connosco dançar, embora não a tivéssemos convidado.
o jantar foi muito divertido. havia tantas coisas, tantas coisas de que falar, seis anos é muito tempo, não acha? no final, lá fomos nós para a bubbles onde, como seria de esperar, estava o luis, com o seu grupo de amigos. ele até parecia “simpatizar” também com a carla, sabe? mas ontem, quando viu a inês, nunca mais conseguiu tirar os olhos dela. pediu à carla para lhe apresentar a amiga, quis logo ir dançar com ela, até parecia que a minha irmã tinha deixado de existir. a carla foi dançar sozinha; se queria dar nas vistas conseguiu-o, com aquela maneira um bocado espalhafatosa, mas gira, de dançar. nunca a tinha visto a dançar assim. e apesar disso tudo, o parvo do luis parecia nem sequer reparar nela, sempre a conversar com a inês, sempre a rir das coisas que a inês dizia... até eu estava irritada com ele, por causa disso, agora imagine como estaria a minha irmã. ela só insistia em ir-se embora, tinha uma cara esquisita, como se estivesse quase a chorar e depois, de repente, uns ataques de riso! juro-lhe, eu estava tão preocupada com a carla!
um bocado contrariada (sim, contrariada) a inês foi telefonar ao pai, para nos vir buscar. e lá fomos, tal como tínhamos combinado, esperá-lo à porta da discoteca, mesmo junto à estrada.
e o luis que não despegava, a pedir à inês o número de telemóvel e a querer marcar encontro com ela para o dia seguinte!
finalmente, lá se foi embora, se calhar percebeu que a carla estava a ficar muito nervosa. e a verdade é que, mal ele desapareceu, ela e a inês puseram-se a discutir uma com a outra, digo-lhe, não sei quem é que começou, só sei que de repente a minha irmã já estava aos gritos e a inês sempre com aqueles ares de senhora, mesmo a provocar...eu mantinha-me calada, mas estava com tanta pena da carla, nem imagina! e de repente distraí-me com um grupo que passou, a cantar muito alto, em direcção à praia. foram só uns segundos, acredite, mas quando voltei a olhar para elas, ouvi um carro a travar, e a minha irmã a dançar com a inês, no meio da estrada e a inês, de repente, a atirar-se contra o carro! mas, sabe, ela já tinham feito as pazes e estavam a dançar, as duas! sim, a dançar! mesmo que o luis ande a dizer que voltou atrás quando ouviu a minha irmã a gritar com a inês e lhe pareceu que a viu a empurrá-la, quando o carro vinha mesmo a passar. e depois, a dizer que a minha irmã tinha abusado das bebidas! foi só um shot ou um vodka com laranja, garanto, nada demais. e quando o carro passou, digam o que disserem, elas já tinham feito as pazes e por isso estavam as duas a dançar. afinal, são amigas. amigas, há tantos anos!


foi com este texto, subordinado ao tema “amizade”, que a brunilde participou no concurso promovido pela diligente câmara municipal de vale de abutres, simpática localidade escondida no mapa de portugal.
quando o enviou, a minha ingénua irmã nem suspeitava que também iria a concurso um texto de conceituado escritor, que logo se abarbatou com o 1º prémio. mesmo assim, “amigas, amigas” valeu-lhe uma menção desonrosa.cá p’ra mim, foi jeitinho que lhe fez um elemento do júri, que anda de olho nela desde que se conheceram, na última passagem de ano; foi ele quem lhe deu conta do tal concurso e a incentivou a participar. mas nem me atrevo a comentar isto com a brunildinha, senão tem um ataque de nervos e, quando isso acontece, as consequências costumam ser desastrosas para quem estiver por perto.

Arquivo de jardinagem

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